Grupo de mães e doulas (profissionais de apoio psicológico e físico à gestantes) promovem manifestação em defesa do direito das gestantes que queiram ter a presença de uma doula em seus partos, sem que seja necessário optar entre a doula e o pai do bebê |
Um pouco atrasada, mas hoje gostaria de compartilhar a magnífica resposta da obstetra Carla
Andreucci Polido ao texto publicado na Folha por um anestesiologista.
"Prezado Dr Marcelo Luis Abramides Torres
Muito interessante seu texto à Folha, no Painel do Leitor, em 08/02/2013, sobre a
manifestação a favor das doulas. Gostaria de comentá-lo.
O senhor afirmou: “... a medicina evolui
bastante e a analgesia que usamos atualmente mantém a consciência, a capacidade de fazer força e até se locomover durante o
parto.”. O senhor obviamente conhece as metanálises da Biblioteca Cochrane
sobre analgesia de parto, e portanto sabe que o uso da analgesia farmacológica
está associada a maior tempo de expulsivo (em cerca de 1 hora), maior risco de
distócias de rotação e progressão, maior taxa de parto instrumental (fórcipe e
vácuo) e de parto operatório. Por causa da necessidade maior de intervenções e
do “sorinho” (o senhor deve ter se esquecido, quando disse que não sabe a que
soro as ativistas do parto de referem, mas vou lembrá-lo: é a ocitocina,
necessária inclusive quando a analgesia farmacológica é bem feita), a OMS e o
Ministério da Saúde do Brasil, usando referências de nível de evidência Ia e grau
de recomendação A, recomendam que os recursos não farmacológicos para alívio da
dor do parto sejam esgotados antes da oferta dos métodos farmacológicos.
O senhor é anestesiologista, não obstetra, então talvez o senhor não saiba que
o apoio contínuo intraparto é um recurso não medicamentoso para controle da dor
do parto, e é capaz de reduzir em cerca de 17% a necessidade de qualquer tipo
de analgesia, em 31% a necessidade de ocitocina, em 28% a necessidade de
cesariana, em 30% o Apgar < 7 no 5º minuto de vida do recém-nascido, entre
outros desfechos. E a observação interessante é que esses resultados foram
melhor obtidos quando o apoio contínuo era oferecido por uma pessoa que não
fizesse parte do staff institucional, nem do núcleo familiar da parturiente. O
senhor talvez não saiba, mas essa pessoa é a doula. E estamos falando de
resultados da metanálise de 21 ensaios clínicos randomisados, incluindo mais de
15.000 mulheres (Hodnett ED, Gates S, Hofmeyr GJ, Sakala C, Weston J.
Continuous support for women during childbirth, Cochrane Review, 2011).
Em outro trecho, o senhor afirma: “Dizer que uma parturiente sob analgesia de parto e cuidados médicos está "presa a cama, dopada e incapacitada" --como diz o artigo “ Das Doulas como Testemunhas”, de Mariana de Mesquita) é um desconhecimento completo do que é feito em bons hospitais em nosso país.” Desculpe, mas aí quem demonstra desconhecimento completo é o senhor. Na esmagadora maioria dos hospitais brasileiros, apesar de todas as evidências a favor da livre deambulação durante as fases de dilatação e expulsão, mulheres ainda são levadas a parir em posição ginecológica, com as pernas amarradas aos estribos. Aliá, quais seriam os “bons hospitais” do país? Se o senhor está se referindo aos hospitais privados, está falando de quase 90% de cesarianas, como já mostrou o DATASUS. Neste caso mulheres estão mesmo deitadas, dopadas e incapacitadas.
Outro destaque em seu texto:” Em ocasiões em que um feto passa a dar sinais de que o parto está impondo a ele algum grau de sofrimento (existem monitores que nos informam que a oxigenação está sendo prejudicada), elas [as doulas] com frequência discutem com a mãe e sugerem que devem esperar mais um pouco a evolução do parto normal para evitarem uma cesariana.”. De novo, eu entendo. O senhor não conhece a recomendação de não se realizar monitorização eletrônica fetal de rotina em mulheres de baixo risco, uma vez que não é obstetra. A ausculta intermitente, com sonar doppler, em intervalos rígidos e pré-estabelecidos, mostrou-se melhor tanto para a dilatação quanto para o expulsivo, garantindo os mesmos resultados perinatais de vitalidade, e com redução da taxa de parto instrumental e cesariana (12 ensaios clínicos controlados, 37.000 mulheres, em Alfirevic Z, Devane D, Gyte GMl. Continuous cardiotocography (CTG) as a form of electronic fetal monitoring (EFM) for fetal assessment during labour. Cochrane Review, 2008).
Sem dúvida, se há uma ausculta fetal não tranquilizadora, e na sequência uma monitorização demonstra um padrão preocupante de traçado de frequência cardíaca fetal, a decisão pela via de parto mais rápida é médica. Nesse caso, se houver qualquer interferência na conduta técnica do médico, realizada pela doula ou por qualquer outro acompanhante, eu sugiro que o senhor reporte o fato e tome as devidas providências pontuais cabíveis. De minha longa experiência atendendo partos nesse modelo, lhe digo que nunca presenciei essa situação, mas concordo veementemente que isso prejudicaria a assistência. Só que não cabem generalizações. Dizer que todas as doulas estão proibidas na sala de parto porque eventualmente podem interferir com condutas técnicas que não lhes cabem seria o mesmo que dizer que todos os anestesiologistas são incapazes de realizar bloqueios regionais de qualidade para analgesia de parto. O senhor diz (e eu acredito) que suas analgesias de parto conferem mobilidade às parturientes e mantêm as necessárias sensações de puxo, mas minha experiência com o procedimento não é tão feliz. Porém eu nunca seria leviana a ponto de dizer que toda analgesia de parto é deletéria ou ineficaz, tal afirmação seria de uma injustiça incomensurável.
Com relação à piada bem humorada que o senhor fez ao final de seu texto, “Entretanto, se fizermos um exercício de futurologia, haverá um momento onde não existirão nem mais partos vaginais ou sob operação cesariana. Nosso tataranetos virão ao mundo num processo de fertilização "in vitro" e desenvolvimento da "gestação" em grandes laboratórios, fora do ventre materno. Isso será possível ainda nesse século. Provavelmente, nessa época deverá haver movimentos a favor da gestação no útero!”, devo confessar que a achei um pouco de mau gosto...como pesquisadora, lhe afirmo que essa linha de pesquisa experimental (gestação extra-útero) busca solução para situações em que a gestação fisiológica não seja possível, e não como idealização de um modelo futuro. Mas eu me permiti sorrir de sua brincadeira.
Carla Andreucci Polido, obstetra, professora assistente do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos, mestre em tocoginecologia e doutoranda em Ciências da Saúde na Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.
O texto que gerou a resposta, na íntegra:
'Doulas interferem, sim, na conduta do obstetra', afirma leitor
LEITOR MARCELO LUIS ABRAMIDES TORRES
DE SÃO PAULO
DE SÃO PAULO
Em 1853, a rainha Vitória deu à luz seu oitavo filho, Leopoldo, com a
ajuda de um novo anestésico, o clorofórmio. Vitória ficou tão
impressionada com o alívio que lhe deu da dor do parto que voltou a
usá-lo em 1857, quando do nascimento da sua última filha, Beatriz,
apesar de membros do clero terem se oposto por considerar que aquilo ia
contra os ensinamentos da Bíblia: "E à mulher o Senhor Deus disse:
'Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz
filhos'.
Também membros da classe médica se opuseram por acharem que poderiam
haver riscos para a mãe e a criança. Não há discussão, portanto, que a
dor é real.
Desde essa época a medicina evolui bastante e a analgesia que usamos
atualmente mantém a consciência, a capacidade de fazer força e até se
locomover durante o parto.
Apesar disso, ainda existem grupos que pregam que um parto humanizado
deva ser muito pouco "medicalizado e, se possível, sem analgesia ou
administração de soro" (nunca entendi a que soro se referem!).
Dizer que uma parturiente sob analgesia de parto e cuidados médicos está
"presa a cama, dopada e incapacitada" --como diz o artigo "Das doulas como testemunhas", de Mariana de Mesquita) é um desconhecimento completo do que é feito em bons hospitais em nosso país.
A qualidade de
analgesia que praticamos permite que a paciente faça força, ande e
sinta o tato. Não a culpo, pois, como fazem questão de dizer, são leigas
que acompanham uma parturiente. Mas a minha experiência de longos anos
atuando na área de anestesia obstétrica mostra que as doulas, não raras
vezes, interferem sim na conduta do obstetra, e que algumas vezes foi
indicado por elas.
Em ocasiões em que um feto passa a dar sinais de que o parto está
impondo a ele algum grau de sofrimento (existem monitores que nos
informam que a oxigenação está sendo prejudicada), elas com frequência
discutem com a mãe e sugerem que devem esperar mais um pouco a evolução
do parto normal para evitarem uma cesariana.
Eu me pergunto: com qual conhecimento da fisiologia do parto elas podem
assumir tal responsabilidade? É muito fácil, pois não respondem
judicialmente, são somente acompanhantes!
Sem querer generalizar, existem doulas que assumem simplesmente o papel
de acompanhante. Porém existem outras --já presenciei algumas vezes--
que oferecem até medicamentos em forma de gotas às pacientes durante o
trabalho de parto.
Hoje os hospitais em que atuo buscam a qualidade através de várias
organizações de acreditação hospitalar. Em todas essas organizações tudo
o que é administrado a um paciente, em nome da segurança, deve ser
prescrito em prontuário e validado pela farmácia da instituição.
Na instituição em que atuo também ocorreu o absurdo fato de uma doula
retirar da paciente, por conta própria, um monitor da frequência
cardíaca fetal para que o obstetra (seguindo um consenso na área médica)
diagnosticasse uma bradicardia (muitas vezes sinal de falta de oxigênio
ao feto) e pudesse indicar uma cesárea.
Como essas senhoras que deveriam ser somente acompanhantes têm essa
atitude? O que há nessas gotinhas? Florais? Medicamentos homeopáticos?
Sedativos? E se o feto nasce deprimido ou desenvolve uma lesão cerebral?
Em prol de que isso foi feito? Para um parto normal a qualquer custo?
PARTO NORMAL
Obviamente o número de cesáreas nos hospitais está excessivamente
elevado, mas, nas maternidades em que atuo, existem suítes especiais
para o acompanhamento do parto normal, com o intuito de estimular que
ocorram em maior número.
Ainda assim temos na maternidade Pro Matre Paulista ao redor de 120
partos vaginais ao mês, sendo a quase totalidade deles sob analgesia. A
incidência de cesarianas no grupo de pacientes que utiliza essas suítes
de parto não ultrapassa 20%, incidência semelhante à de vários países
desenvolvidos. Diga-se de passagem, a imensa maioria sem a presença da
doula.
Quando vejo uma criança por portar "paralisia cerebral", doença em geral
causada por oxigenação inadequada durante um trabalho de parto, tenho a
certeza de que o ideal não é um parto vaginal e, sim, um parto com uma
criança e mãe saudáveis.
A mortalidade materna é também inversamente proporcional a uma boa
assistência obstétrica. Querer politizar o parto é, no mínimo, uma
grande irresponsabilidade. Não existem condutas médicas de "esquerda ou
de direita", as condutas são baseadas em evidências científicas.
VIOLÊNCIA
Não posso deixar de comentar a absurda colocação de Mariana de Mesquita:
a doula "presencia e identifica a violência silenciosa e covarde contra
dois seres (mãe e bebê)". O que eu presencio são equipes de
profissionais (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem,
fisioterapeutas, fonoaudiólogos e tantos outros) que se preocupam
continuamente em dar o melhor atendimento às pacientes.
Entretanto, se fizermos um exercício de futurologia, haverá um momento
onde não existirão nem mais partos vaginais ou sob operação cesariana.
Nosso tataranetos virão ao mundo num processo de fertilização "in vitro"
e desenvolvimento da "gestação" em grandes laboratórios, fora do ventre
materno. Isso será possível ainda nesse século. Provavelmente, nessa
época deverá haver movimentos a favor da gestação no útero!
Tenho três filhos que vieram ao mundo por parto vaginal, sob analgesia
peridural e sem a presença de uma doula. Os trabalhos de parto de minha
mulher foram acompanhados pela sua médica e por uma boa enfermeira
obstétrica, com conhecimentos profundos da fisiologia da gestação e
parturição.
Marcelo Luis Abramides Torres é médico Coordenador da Equipe de
Anestesia Obstétrica da Maternidade Pro Matre Paulista, professor doutor
em Anestesiologia da Faculdade de Medicina da USP, responsável pelo
Centro de Ensino e Treinamento para médicos em especialização da
Sociedade Brasileira de Anestesiologia e secretário da Sociedade de
Anestesiologia do Estado de São Paulo
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